1. Não é coisa de outro tempo

    Tenho vindo a aperceber-me que os homens acham que vivemos num país desenvolvido onde a igualdade é um dado adquirido e onde a luta deixou de fazer sentido. Escrevo assim “os homens”, coisa que eles também não apreciam, mas a verdade é que ainda não conheci nenhum a quem isto não se aplique minimamente. Acham-se todos diferentes desses homens e a verdade é que são! Os meus homens são distintos, cultos, esclarecidos… mas quão diferentes serão na realidade?

    Dizem-me “vê lá isto do teu feminismo” ou “vais gostar deste filme, muito feminista”. Dizem-no inocentemente, sem maldade nem preconceito. No entanto, a minha cabeça não pára de pensar no “meu feminismo”… penso no porquê de não encararem isto como algo também seu, o porquê de também não gostarem desse filme ou não terem o mesmo interesse por essas notícias. Os meus homens lavam a loiça e cozinham melhor do que eu, sabem coser um botão e passar a ferro. Eu passo a roupa com secador. Não que ache isso algo positivo, é só assim que é. Nunca os vi sentirem a superioridade na pele, não sabem o que isso é. Olham para mim de igual para igual. Ainda assim, há dias em que me entregam o “meu feminismo” embrulhado como um presente.

    Ouvi também recentemente o pensamento de que as estrelas de Hollywood mentem sobre os relatos de assédio sexual para atingirem mais fama ou por ser “moda”. Ouvi-o já da boca tanto de homens como mulheres. Pensei nisso também, pensei em como era possível esse ser o seu principal pensamento. Mulheres relatam abusos e o primeiro pensamento não é sobre como isso é chocante, mas sim sobre a possibilidade de ser mentira. A possibilidade de os homens estarem a ser vítimas de uma campanha sem piedade contra eles. E a possibilidade de ser verdade?

    Não será suficiente a possibilidade de ser verdade?

    Após alguns dias a divagar sobre este assunto veio-me à cabeça esta ideia de que eles pensam que a igualdade já está garantida. Acham que o feminismo é a supremacia feminina e não a igualdade, porque essa já existe, como toda a gente sabe (também durante algo tempo senti que vivia neste paraíso onde alguém antes de mim já tinha lutado tudo e eu só tinha de existir nos meus direitos). Acham até “querido” da nossa parte achar o contrário e gostam de nós assim, revolucionárias de meia tigela. Percebi que não entendem quão sério isto é, não sentem isto como uma luta sua. Porque se os meus homens distintos, cultos e esclarecidos sentem a necessidade de se defender suavemente da afronta feminina, quem não sentirá? Se os meus homens, que para mim sempre foram exemplares do homem moderno, não vêem os detalhes da sociedade, quem é que verá?

    Não vêem eles os pormenores, as pequenas coisas que importam. O pai que leva a filha ao altar entregando-a a outro homem numa cerimónia preparada quase exclusivamente pelas mulheres. O nome do pai a prolongar-se imutável por gerações sem fim. O nome da mulher a ficar escondido sobre outro nome qualquer. Uma mulher a dar o nome do homem para a lista de espera do restaurante. A música sexista das discotecas. Não é coisa de outro tempo nem de outro país, somos nós. Somos nós com todo o simbolismo que permanece e no qual não refletem nem eles nem elas. Elas das quais não se exclui a culpa, porque fazem parte integrante do problema e muitas vezes são, arrisco a dizer, a causa.

    Eu tenho 21 anos e a primeira vez que fui abordada por um homem na rua tinha 14. A primeira que não seria nunca a última. Demorou muito tempo até passar a responder e ainda assim, por vezes, ignoro. É mais fácil ignorar, tenho medo que façam algo pior se responder, principalmente se não houver mais ninguém na rua. Lembro-me de durante a minha adolescência pensar duas vezes na roupa que levava para a praia se depois tivesse que fazer o caminho para casa a pé. Acabei por perceber que a roupa não lhes fazia diferença, os homens dos camiões reagem tanto a calças como a calções. Orgulho-me de nunca ter mudado de caminho. Dizem todo o tipo de coisas e fazem todas as ofertas e mais algumas. Falam como se o meu corpo fosse uma montra e cá dentro não vivesse ninguém.  Não é coisa de outro tempo isto. Nem é coisa que aconteça só uma vez ou duas na vida de uma mulher.

    A Constituição está no masculino. A Lei está no masculino. Os livros de História estão no masculino, não existiam mulheres no paleolítico. Não sabemos como nos iríamos referir se a Marisa Matias tivesse mesmo ganho as eleições, porque nunca houve uma Presidente da República, da mesma forma que seria estranho para os americanos se a Primeira Dama de outrora se tornasse Presidente. Enganem-se aqueles que acham que isso não teve influência e que o subconsciente das pessoas não passa por aí. Enganem-se todos aqueles para quem a falta de mulheres no poder é pura coincidência. Vivem na ilusão da igualdade fingida e do preconceito subtil.

    O meu feminismo devia ser também o teu, devias ter tanta ferocidade na sua defesa como eu, sobretudo porque também te afecta a ti. A supremacia não é benevolente com ninguém, nem mesmo com o superior, principalmente se só se gostava de estar no meio. É difícil ser homem, talvez até mais difícil que ser mulher. Não o queria para mim, nunca o quis nem desejei. É confuso e sem linhas condutoras, a verdade é que nenhum deles sabe para onde se virar nem como corresponder às expectativas de uma sociedade ambivalente.

    Quanto a mim, torno-me cada vez mais atenta aos detalhes. Não me interpretem mal: não preciso que as leis mudem para o feminino, nem quero implementar que o nome da mãe deve vir sempre no fim. Não sou a favor de que as mulheres devam ocupar as chefias só por serem mulheres. Só quero que as coisas não se façam porque “sempre foi assim”. O que eu desejo é que o sexo seja indiferente e quero começar por um bocadinho mais de crítica sobre as pequenas atitudes que temos todos os dias, não é preciso muito. Só um bocadinho mais…